'MÚSICA NA SERRINHA' CELEBRA HARMONIA ENTRE RITMOS E CULTURAS DIFERENTES

CULTURA

  • O filme 'Música pelos poros' documenta os dez dias de criação no Festival Artes Serrinha, em Bragança Paulista Foto: Talita Virgínia e Walter Costa / Divulgação

  • Álbum e documentário registram residência musical que uniu onze músicos brasileiros e estrangeiros em fazenda no interior de São Paulo

    O filme 'Música pelos poros' documenta os dez dias de criação no Festival Artes Serrinha, em Bragança Paulista - Talita Virgínia e Walter Costa / Divulgação

    POR DIANA FERRAZ

    RIO — Em Joanópolis, interior de São Paulo, não é difícil encontrar quem jure de pés juntos que já viu o lobisomem passar. O município, próximo a Bragança Paulista, é conhecido como “a cidade do lobisomem” e a cultura local gira há muitos anos em torno da lenda folclórica. Em julho de 2015, na mesma região, a cerca de 40 km de distância dali, um pequeno grupo de músicos de diferentes cantos do mundo celebrava o mito ao compor, no improviso e em meios a uivos, uma canção em homenagem ao licantropo — um som que começava meio jazz e terminava em samba.

    No samba sem cavaco, porém, o que dava a base harmônica era o tar, instrumento tradicional persa, tocado por Sahib Prazade, um solista do Azerbaijão que provavelmente nunca havia usado seu tar para essa função. “Dá-lhe, Sahib no cavaco!”, brinca Carlos Malta, o músico “escultor do vento” que, com seu bom e velho pífano e um microfone headset, dava aos outros nove instrumentistas os comandos da música que nascia, acompanhado pela voz doce e morna da cantora cabo-verdiana Mayra Andrade, que ia compondo e cantando a letra ali mesmo.

    A cena está registrada no filme “Música pelos poros”, do diretor Marcelo Machado, que documenta os dez dias de criação musical que marcaram a edição de 2015 do Festival Artes Serrinha. O evento é uma espécie de laboratório cultural a céu aberto, que desde 2002 promove anualmente, em julho, atividades artísticas que priorizam a convivência, a imersão e a experimentação, no bairro da Serrinha, em Bragança Paulista.

    Carlos Malta foi um dos onze participantes da residência que deu origem a um álbum e um documentário - Talita Virgínia e Walter Costa / Divulgação

    Naquele ano, o curador do festival, Fabio Delduque, convidou os instrumentistas Marcos Suzano, Jaques Morelenbaum e Benjamin Taubkin para a primeira residência musical do evento. Por sua vez, os três convidaram grandes nomes da música instrumental. Tanto brasileira — Jovi Joviniano na percussão, Meno Del Picchia no contrabaixo, Sacha Amback nos teclados e Carlos Malta nos sopros — como internacional — o colombiano Antonio Arnedo, junto com Malta no saxofone e pífano; a sul-coreana Kyungso Park, que levou o toque oriental do instrumento de cordas gayageum, e Sahib Prazade, no tar (que também foi cavaco).

    Coroando o time, Mayra Andrade, de Cabo Verde, emprestou sua voz ao caldeirão de influências e culturas diferentes, que deu origem ao CD “Música na Serrinha”, lançado junto com o documentário pelo selo Núcleo Contemporâneo, com oito músicas, quase todas compostas lá mesmo.


    — A ideia era criar uma situação ideal, com os melhores equipamentos, acústica perfeita e em harmonia com a natureza, para que músicos convidados, nacionais e internacionais, convivessem por dez dias, tocando e criando na hora que quisessem — conta Delduque, um dos donos da Fazenda Serrinha, um grande parque natural de reflorestamento, permeado por instalações artísticas, que abrigou o encontro.

    Mayra Andrade, cantora cabo-verdiana, foi a voz escolhida para o encontro - Talita Virgínia e Walter Costa / Divulgação

    O resultado, em harmonia com a fala do pianista Benjamin Taubkin no início do filme, são composições que nasceram diretamente da “música que cada um tem”. No encontro, qualquer elemento do universo cultural e da experiência pessoal dos músicos parecia ser um possível ingrediente para a criação em conjunto. Se “O lobisomem” veio da informação sobre Joanópolis, a música “Mula sem cabeça” nasceu quando Malta avistou uma instalação artística que há na Fazenda Serrinha em homenagem ao personagem folclórico. A oriental “Chahagar”, de autoria de Sahib Prazade, e a intimista “Cumbia”, de Antonio Arnedo, um jazz que tem como base o gênero característico da Colômbia, são expressões diretas das cargas culturais de seus autores, reforçando o diálogo internacional a que o projeto se propõe.

    Já “Chuva na Serrinha” nasceu durante uma visita anterior do violoncelista Jaques Morelenbaum à Fazenda, quando ele, encantado pelo barulho da chuva, gravou o som no celular enquanto criava melodia e compasso por cima. Chegando ao encontro de 2015, Morelenbaum mostrou a gravação aos colegas, reviveu a memória e compôs a música, além de escrever as partituras da composição para todos os instrumentos presentes.

    A reflexiva “Galpão”, criada durante a residência e de autoria de Benjamin Taubkin, é um exemplo da harmonia entre as diferentes expressões culturais presentes — o que parece ser uma música árabe, começando apenas com o tar e o violoncelo, cresce e dá espaço para os outros instrumentos e linguagens. A pulsante “O outro”, uma das poucas cantadas e não inéditas do CD, leva ao conjunto uma composição funkeada e cheia de groove, de autoria do percussionista Jovi Joviniano — convidado por Marcos Suzano para ser o elemento “perturbador” no projeto (o Exú do grupo, como eles definem no documentário).

    O pianista Benjamin Taubkin dá palestra durante a residência na Serrinha - Talita Virgínia e Walter Costa / Divulgação


    O álbum se encerra com uma verdadeira imersão. Para se ouvir de olhos fechados, “Tema para Sahib” é uma jam session que ultrapassa os 15 minutos — mas que o curador Fabio Delduque garante ter durado uns 25 minutos na gravação original. De autoria de Benjamin Taubkin e dedicada a Sahib Prazade, a composição emana a sintonia musical perfeita dos onze residentes e chegou a arrancar lágrimas de quem testemunhou sua criação-execução.

    Na música feita na Serrinha, cada composição, não importando a origem do ritmo base, abria espaço para a participação das outras referências musicais presentes. Aos ritmos brasileiros adicionava-se o toque oriental do tar e do gayageum. A uma música árabe, somava-se uma percussão funkeada. E assim iam… durante dez dias — de pura alquimia.

    — Na História a gente vê quanto se navegou, o quanto se fez comércio em busca de novos temperos e especiarias. As pessoas precisavam de outros cheiros, de outros sabores. Nenhuma cultura é completa — diz o pianista Benjamin Taubkin, que também estrela o documentário “O piano que conversa” do mesmo diretor, que registra encontros musicais do músico com mais de 20 de quatro continentes — Quando a gente faz um som com nosso instrumento e de repente entra um timbre de outro, que vem de um país completamente diferente do nosso, é como quando entra um empero de outra cultura no seu arroz, sabe? É um presente.

    Leia mais: https://oglobo.globo.com/cultura/musica-na-serrinha-celebra-harmonia-entre-ritmos-culturas-diferentes-22011588#ixzz4xW5IsDtr
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    Jornal O Globo

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