O MÚSICO POPULAR BRASILEIRO, SUA REALIDADE E O ESTUDO FORMAL DE MÚSICA
O
MÚSICO POPULAR BRASILEIRO, SUA REALIDADE E O ESTUDO FORMAL DE MÚSICA
Ainda é comum na sociedade brasileira o conceito de que o músico
já nasce feito. Que não é possível a um indivíduo qualquer se dedicar ao
aprendizado e prática de um instrumento – incluindo a voz como tal – com
exercícios regulares que lhe permitam o domínio das técnicas, e aquisição de
vocabulário e de diferentes “linguagens” do mesmo.
Esta dedicação é encarada com naturalidade pela sociedade em
casos específicos: quando se trata do esforço cotidiano de superação dos músicos
eruditos em estágios avançados de domínio de um instrumento, ou, no campo
popular, nos casos de indivíduos que atuem junto a artistas com grande apelo na
mídia, com vários trabalhos envolvidos em grandes eventos musicais da cena
nacional. Com um alto nível de comprometimento com esses “grandes artistas”, e
com a responsabilidade de exercer bem a profissão e honrar compromissos de
tamanha importância comercial, é justo que as pessoas se dediquem a estudos mais
profundos dos elementos da música – pensa o brasileiro de uma forma geral.
Realmente o povo brasileiro é muito musical, e isso acaba
involuntariamente corroborando aquele pensamento.
Embora o Estado brasileiro seja omisso e não apresente uma
política séria no que diz respeito à educação musical do nosso povo – onde os
fundamentos do ensino de música e o próprio processo de musicalização ajudariam
significativamente na formação de uma identidade cultural mais forte e
consciente – é comum e natural que surjam, em todas as partes do Brasil, e a
todo momento, pessoas com um talento musical incrível e uma capacidade singular
de interpretação.
Todos conhecemos exemplos de excelentes artistas autodidatas,
com um jeito único de expressar a sua musicalidade dentro dos mais variados
gêneros, do Bolero ao Rock. Muitos têm origem humilde e, através de trabalhos
com a música, consolidam seus nomes no competitivo mercado da área; alcançam
sucesso profissional e financeiro desenvolvendo, na prática, um cabedal de
conhecimentos intuitivos que abrangem os elementos musicais utilizados dentro
da(s) “linguagem(ns)”
Como esses artistas ensaiam muito o repertório com o qual
trabalham, alcançam resultados práticos expressivos, principalmente no que tange
ao domínio do vocabulário musical do gênero em que atuam, e às diferentes formas
que constituem o mesmo, tornando-se legítimos representantes da arte que levam a
público, pois passam a sua mensagem “com verdade”!
Quando tratamos então de autodidatas que tocam a chamada música
popular “de raiz”, como o Samba e o Baião, é legítimo que considerem suficiente
aquele conjunto de conhecimentos técnicos adquiridos empiricamente, praticando
em grupo, ou mesmo sozinhos (acompanhando-se com um instrumento harmônico), para
realizar aquela “linguagem” responsável pela integração deles com a música e com
o mundo do trabalho, que configura a sua realidade musical ou a do meio em que
vive.
Mas e se, por hipótese, fosse dada a estes talentosos músicos a
oportunidade de estudar música em seus fundamentos teóricos: harmonia,
subdivisões rítmicas; de terem acesso a um ensino sistematizado que oferecesse
uma oportunidade formal de aprimorarem-se tecnicamente nos seus
instrumentos, a ponto de explorar melhor suas possibilidades e tornarem-se mais
expressivos naquela(s) “linguagem(ns)” que já dominam, abrindo suas mentes para
outras possibilidades artísticas que vêm com o caminhar do aprendizado?
Há entre nós o mito de que música não se estuda, e de que, nos
casos de músicos com formação autodidata, isto levaria ao embotamento da
expressividade espontânea e criativa destes. É uma avaliação que ouvimos não só
de leigos no assunto, mas também de grande parte dos músicos em questão.
Sinceramente, nunca vi ou ouvi falar de alguém que, por ter
passado a estudar técnica de algum instrumento, tenha “travado” seu modo de
tocar ou se transformado num músico “duro”, sem suingue, frio e calculista em
relação ao talento natural de outrora.
Há casos em que excelentes instrumentistas eruditos mostram-se
pouco à vontade interpretando peças populares, apresentando uma condução “dura”
do tema, comprometendo a fluência e o suingue da “linguagem popular”.
Músicos populares também enfrentam dificuldades com eventuais
despreparos técnicos em relação à linguagem erudita, que requer significativa
destreza em passagens cujas articulações/ digitações são realizadas em frações
exíguas de tempo, com precisão de metrônomo, além de outras particularidades que
dificultam as adaptações de músicos de parte a parte.
Contudo, quando o indivíduo gosta de fazer música, e chega a
conclusão de que não existe gênero musical bom ou ruim, e sim músicas boas ou
ruins nos diversos gêneros musicais que se tem acesso e com os quais se
trabalha, fica difícil não se interessar por um estudo mais aprofundado dos seus
elementos estruturais e das suas diversas possibilidades de expressão.
Acredito que o modo autodidata é o meio mais interessante de se
começar a tocar um instrumento ou cantar. Foi primordial, no meu caso, acumular
algumas experiências que tive ao me trancar no quarto para tocar junto com os
discos que gostava de ouvir e que avaliava ser possível acompanhar tecnicamente
na ocasião. Desenvolver as levadas , tocar junto com outros
instrumentos gravados, sobretudo tocar ouvindo as nuances e dinâmicas dos
instrumentos e vozes dos discos era, e ainda é, uma experiência maravilhosa e
enriquecedora para os músicos, principalmente iniciantes.
Porém, após um certo tempo, que obviamente varia de pessoa pra
pessoa, o músico que se interessa pela qualidade da música que faz fica
aborrecido e angustiado com as suas limitações. Não se conforma com as poucas
variantes que dispõe para utilizar nas mesmas situações que ocorrem na sua
música, o que pode torná-lo previsível em determinadas ocasiões. Parece-me
desnecessário afirmar o quanto isto é desestimulante para o músico e o artista
de uma forma geral.
Só que a vida atribulada e desgastante do músico no Brasil, ou
mesmo o fato de sua agenda estar lotada com eventos que denotam outras
prioridades na condução de sua carreira, quando atingem um certo nível de
reconhecimento e sucesso profissional, leva o sujeito a pensar que estudar
música e aprender a ter consciência daquilo que faz, e do que pode fazer no
palco, é perda de tempo nesta altura do campeonato.
Acontece que alguns fatos são inexoráveis para os músicos, e
dentre eles há o seguinte: a partir de um certo nível técnico alcançado com um
tempo considerável de “malhação” no instrumento e de experiências acumuladas “na
estrada”, você consegue galgar outros patamares, se estuda com regularidade e
progressão. Para manter-se no mesmo nível alcançado, é preciso estudar
praticando exercícios de rotina que o levaram até aí. Se o músico simplesmente
pára de estudar e não pratica nada fora de sua rotina de trabalho, “é ruim” de
não descer ladeira abaixo!
Portanto, acho um desperdício quando músicos, principalmente
músicos populares, não enxergam a importância de reservar um tempo, dentro da
sua rotina, para o estudo teórico e prático dos fundamentos da música, assim
como o aprimoramento técnico de sua performance no instrumento, qualquer que
seja ele: violão, percussão, voz, etc.
Com o ser humano, isso se verifica comumente: quando gostamos
mesmo de fazer uma coisa, e o fazemos com “alma”, nunca ficamos plenamente
satisfeitos com as nossas possibilidades por um tempo muito longo. Quando
atingimos determinada etapa e ouvimos coisas novas e instigantes acontecendo em
outros lugares do Brasil e do mundo, outros trabalhos bem feitos, nos sentimos
impulsionados a tentar novas fórmulas, caminhos e maneiras de se expressar sem
descaracterizar a linguagem dos trabalhos em que estamos inseridos.
Não se trata de importar novos conceitos estragando o que já é
bem realizado. Trata-se de dar vazão à grandeza da alma, deixando a preguiça de
lado, e internalizando cada vez mais elementos que nos permitam, de maneira
relaxada (sem “forçar a barra”), realizar a nossa música com várias “cartas na
manga”, com um leque de opções que nos permita desafiar a mesmice e a
mediocridade.
por
Marcello Teixeira
http://www.percussionista.com.br/artigos/o-musico-popular-brasileiro-sua-realidade.htm>
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